domingo, 17 de janeiro de 2016

Entrevista com o cineasta JOEL CAETANO

Quem olha para a imagem acima pode pensar que esse sujeito esquisito, com óculos sujos de sangue e cara de louco é apenas um sujeito esquisito, com óculos sujos de sangue e cara de louco – possivelmente algum serial killer lunático que sente prazer em matar pessoas dentro de carros velhos em encruzilhadas escuras quando a lua está cheia e as vozes sussurram ordens demoníacas em seus ouvidos. No entanto, para o alívio dos leitores deste singelo blog, que não precisam temer que eu faça entrevistas sérias com assassinos em série perigosos ou com qualquer outro tipo de doentes mentais agressivos que possam colocar nossas vidas em risco, explico que a foto do rosto sádico que abre esta matéria é, na verdade, de um dos mais promissores, talentosos e simpáticos cineastas brasileiros da atualidade: Joel Caetano.

Joel Caetano é um diretor, roteirista, montador e ator de cinema nascido em São Paulo no ano de 1977. Apesar de pouco conhecido pela maior parte das pessoas que não se interessam por filmes nacionais, o cineasta paulistano, criador da RZP Filmes, vem ganhando cada vez mais espaço em grandes festivais de cinema, inclusive internacionais, e seus filmes possuem qualidades técnicas e estilísticas tão admiráveis que não podem ser negadas nem mesmo por aquele pessoal maçante e rabugento que não gosta nem um pouco do gênero a que ele se dedica: o terror.

Para provar o que eu digo, deixei, no final da matéria, um link para se assistir ao curta-metragem ENCOSTO, de 2013, no qual Joel, com recursos financeiros mínimos, assumiu o roteiro, a direção e a atuação, criando uma rápida, porém intensa experiência audiovisual que certamente ficará gravada na memória de todos aqueles que por ela se aventurarem.

Conheci o Joel quando fui assistir ao filme "As Fábulas Negras" em um festival de cinema de Londrina. O longa-metragem em questão foi codirigido por ele em parceria com Rodrigo Aragão, Petter Baiestorf e José Mojica Marins – o eterno “Zé do Caixão” – e é composto por segmentos distintos que apresentam versões sangrentas e aterrorizantes dos mitos folclóricos brasileiros (saci, lobisomem, monstro do esgoto, etc.). No longa, Joel dirigiu o espetacular episódio A Loira do Banheiro.
Da esquerda para a direita: Rodrigo Aragão (diretor de Mar Negro), eu (precisando de um bom corte de cabelo) e Joel Caetano
Assim que assisti aos filmes do Joel, tornei-me imediatamente um fã e não perdi tempo em conversar com ele, o que foi facilitado pelo fato de ele ser uma pessoa muito divertida, humilde e aberta ao diálogo.

Então, sem mais enrolações, segue a entrevista completa, na qual conversamos sobre o cinema de terror no Brasil e o trabalho cinematográfico do Joel:

Melvin Menoviks: Olá, Joel. Muitíssimo obrigado por ter aceitado com tanto entusiasmo o meu convite para participar desta entrevista para o blog. Apesar de eu ter tomado conhecimento de sua obra apenas muito recentemente, na exibição do Festival de Cinema de Londrina do curta-metragem “Judas” e do filme “As Fábulas Negras”, já posso dizer que sou um fã e um admirador do seu talento na sétima arte. O gênero de terror é, muito injustamente, um tanto desprezado nos festivais de cinema, de modo que encontrar pessoas empenhadas e, mais do que isso, apaixonadas pelo terror é sempre gratificante e revigorante para mim.

Em boa parte dos festivais de cinema, parece que as pessoas estão mais preocupadas com o suposto “Cinema de Arte” do que com o que eu chamo de “Cinema de Verdade”, feito por amor e com vontade, não para demonstrar intelectualidade e mero conhecimento de teoria cinematográfica. O terror está repleto de cineastas que têm um amor genuíno pelo que fazem e que não medem esforços para levar um pouco de diversão aos espectadores, enquanto o assim chamado “Cinema de Arte” está cheio – com muitas exceções, é claro – de filmes chatíssimos que se supervalorizam demais e que servem apenas para inflar os egos de uns poucos cinéfilos prepotentes e esnobes. Aliás, na minha opinião, poucas obras ditas artísticas têm mais da verdadeira Arte dentro de si do que os filmes de Dario Argento e Mario Bava, por exemplo.

Depois desse meu desabafo, posso dizer com muita felicidade que, desde o primeiro curta-metragem seu que eu vi, tive a certeza de que você é uma dessas raras pessoas que fazem Cinema de Verdade. Então, vamos às perguntas:

Desde quando você se interessa pelo terror?

JOEL CAETANO: Em primeiro lugar, gostaria de agradecer o espaço e as palavras de incentivo. Me sinto muito honrado com o espaço cedido para falar sobre meu trabalho.

Bom, cresci nos anos de 1980 e demorei para ter vídeo-cassete em casa. Por isso, minha primeira formação cinematográfica veio dos filmes de sessão da tarde e filmes da meia-noite na TV.

Naquela época era possível assistir a um filme de terror na televisão durante o dia, e não só terror, mas também comédias adolescentes com conteúdo erótico, filmes de ação, aventura e artes marciais bem violentos, o que hoje é considerado inadequado para o horário. Essa “liberdade” (ou falta de critério de avaliação de conteúdo por parte das emissoras) acabou sendo um ponto crucial para adquirir um repertório cinematográfico incrivelmente variado.

Também não posso falar em minha formação sem citar os dois primeiros filmes que vi no cinema: “O Labirinto – A magia do tempo” e “Robocop – O Policial do Futuro”.
Labirinto – A magia do tempo, com David Bowie e Jennifer Connelly: um dos filmes que marcaram a infância de Joel Caetano
O primeiro, me lembro de ter visto com a sensação nítida de estar cercado pelas criaturas mágicas do filme na sala de cinema, a ponto de vê-las andando pela escuridão (até hoje juro de pés juntos que as vi de verdade). Eu já tinha uma imaginação fértil e essa experiência me fez entender a força e o efeito que o cinema tem sobre as pessoas.

Quanto ao Robocop – O Policial do Futuro, a violência gráfica me encantou. Eu ainda era criança e não entendia direito porque todo aquele sangue me agradava tanto, foi uma espécie de desconstrução da violência na minha mente, passei a entender que quando é na tela, tudo é permitido.

Mas naquela época eu era apenas um mero espectador, sem pretensões nenhumas de trabalhar com cinema. Eu queria ser desenhista de histórias em quadrinhos, mas também não levei isso muito adiante pois tive que trabalhar muito cedo e isso não era compatível com essa realidade.

Em 2001, já adulto, comecei a cursar uma faculdade de audiovisual e calhou ser no período da popularização do cinema digital. Fazer cinema já não era tão caro, o que me proporcionou a possibilidade de experimentar muito ainda na faculdade.

Nessa época assistia de tudo! Eu cheguei a ver de 3 a 4 filmes por dia, de todos os gêneros possíveis, e lia muito sobre o assunto.

Mesmo assim, quando decidi fazer um filme, para manter as expectativas no lugar correto, procurei trabalhar com um gênero que se adequava melhor ao baixo-orçamento, e o terror foi a opção mais viável.

Nos meus estudos percebi que alguns dos grandes diretores que eu admirava tinham começado fazendo filmes de terror, muitas vezes até filmes considerados trash (termo que causa muita controvérsia, principalmente no Brasil) e, baseado nessa premissa, comecei a me aventurar pelo gênero, mas de forma totalmente instintiva.

Diferente do que eu pensava no início, cheguei à conclusão de que o terror é um gênero dificílimo de se realizar e, por isso, venho tentando me aprimorar a cada filme em que tenho oportunidade de trabalhar.

M.M.: O que o terror significa na sua vida?

J.C.: O medo é uma das sensações mais primitivas do seres humanos. Ver um filme de terror nos faz sentir essa sensação de uma forma segura, na poltrona do cinema ou no sofá de casa. É como se estivéssemos evocando antigos demônios por meio da grande tela, quase como um ritual. Como cineasta, acho incrível colocar para fora meus próprios medos e ver como as pessoas se relacionam com eles. Ter sucesso nessa empreitada é um grade desafio, mas me encanta muito.

M.M.: Para que você acha que serve a ficção de terror na vida das pessoas?

J.C.: Na sua essência, o filme de terror pode servir como uma diversão simples e puramente sensorial. Mas, dependendo do filme e da história que você pretende contar, esse nível de mensagem pode se ampliar para algo muito mais complexo. Meu curta JUDAS, por exemplo, é uma clássica história de horror, mas, por trás dos sustos e sangue, há também um drama e temas relevantes para sociedade, como a exploração do trabalho infantil, por exemplo. Não estou dizendo que o cinema tem a obrigação de ser educativo nem panfletário – aliás, acho isso meio chato quando é feito de forma explícita –, mas podemos dizer muito mais, de forma sutil, usando os filmes em geral como um meio para mensagens mais relevantes.
Cena do premiado curta-metragem JUDAS, o mais recente trabalho do Joel
M.M.: Quando e como você começou a se interessar por cinema? E como começou a fazer filmes?

J.C.: Eu já fazia uns testes de efeitos especiais em casa, com uma câmera VHS, mas fiz meu primeiro filme de fato ainda no primeiro ano da faculdade, contrariando até mesmo a instituição que previa aulas práticas só a partir de semestres mais avançados. Montei minha produtora, a RZP Filmes (ainda de forma amadora) nessa época, e os primeiros filmes que produzi foram Afrodite (2001), que conta a história de um casal que discute e no final você descobre que na verdade a mulher decepou o membro sexual de seu parceiro (premissa super leve, por sinal) e Dupla Surpresa (2002), um fan film de Star Wars sobre uma princesa metamorfa que luta contra um Sith disfarçado de Jedi. Esses filmes foram importantes para mim, pois percebi que era possível produzir esse tipo de história mais voltada a gêneros pouco explorados em nosso cinema, como o terror e a ficção científica.

M.M.: Em quantos filmes você já participou? Quantos dirigiu?

J.C.: Fiz os seguintes filmes:

Como diretor, foram 15 curtas e um longa-metragem:

Afrodite – 2001
Dupla Surpresa – 2002
Onde há fumaça (Animação) – 2003
Trabalhador – 2003
Heróiz com Z de Brazil – 2004
Despedida – 2004/2005
Bruma (Animação) – 2005
Minha Esposa é um Zumbi – 2006
Junho Sangrento – 2007
O Assassinato da Mulher Mental – 2008
GATO – 2009
ESTRANHA – 2010/2011
DR – 2012 (co/direção com Felipe M. Guerra)
ENCOSTO – 2013
JUDAS – 2014
As Fábulas Negras (A loira do Banheiro) – 2015 (longa-metragem co-dirigido por Rodrigo Aragão, Petter Baiestorf e José Mojica Marins).

Como ator, foram 3 Longas, 1 média e 2 curtas:

A noite do Chupacabras (longa) – 2011
O Tormento de Mathias (média) – 2011
Morte e Morte de Johnny Zombie (curta) – 2011
Roquí Son 3D (curta) – 2012
Mar Negro (longa) – 2013
As Fábulas Negras (longa) – 2015 (atuei nos episódios "O Saci", dirigido por José Mojica Marins, e "A loira do Banheiro", de minha própria autoria).

Entrevistas para documentários foram 3:

Sangue Marginal – 2010
Trash – Canal Brasil – 2012
Horror no Cinema Nacional – 2015

M.M.: Quais os seus cineastas favoritos? E quais os cineastas brasileiros de que você mais gosta?

J.C.: Essa é uma pergunta complicada, pois admiro muitos diretores e alguns apenas por trabalhos bem específicos.

Vou fazer uma lista dos que me lembro agora, mas pode ser que fique alguém de fora: James Whale, Alfred Hitchcock, Stanley Kubrick, Sam Raimi, George Romero, Francis Ford Coppola, Richard Donner, John Carpenter, Stuart Gordon, Quentin Tarantino, George Lucas, Steven Spielberg, Martin Scorsese, Christopher Nolan, Wachowski Brothers, Sergio Leone, Dario Argento, Mario Bava, Lucio Fulci, Takeshi Miike, Ridley Scott, Guillermo Del Toro, Alfonso Cuarón, Álex de la Iglesia, Lars Von Trier, Rogério Sganzerla, Fernando Meirelles, Jorge Furtado, e, é claro, José Mojica Marins.

Existe toda uma nova geração de cineastas de cinema de gênero no Brasil, como, por exemplo, Rodrigo Aragão, Dennison Ramalho, Petter Baiestorf, Gurcius Guewdner, Kapel Furman, Cristian Verardi, Paulo Biscaia, Rodrigo Brandão, Felipe M. Guerra, Rubens Mello, a galera do Cine Guerrilha, Fernando Rick, entre outros que são exemplos de talento e persistência no cinema independente, os quais respeito e admiro muito.

Bom, devem ter ficado muitos de fora, por isso é difícil falar sobre isso. Tenho certeza de que, quando a matéria sair, vou me retorcer quando lembrar de alguns deles (risos).
Dario Argento, um dos cineastas favoritos do Joel (e meu também)
M.M.: E fora do cinema? Quais as suas principais influências e inspirações?

J.C.: Sou uma esponja: estou sempre à procura de informações e atento o tempo todo a algo que possa me inspirar. Gosto muito de ler e tenho uma coleção enorme de livros de todos os gêneros, mas, por incrível que pareça, leio mais livros de ficção científica do que terror. É um outro tema que me atrai muito e que tenho muita familiaridade, tanto que meu trabalho de conclusão de curso na Faculdade foi sobre os efeitos especiais no cinema de ficção científica. Inclusive, já ministrei até oficinas sobre o tema. Com certeza é gênero que pretendo explorar em breve em algum filme. É claro que também já li inúmeros livros de terror e fantasia , principalmente os clássicos, onde, acredito eu, está a essência de cada gênero.

Outra inegável, e talvez até mais importante influência em meu trabalho, são os quadrinhos. Como escrevi anteriormente, quando criança eu queria ser desenhista de histórias em quadrinhos, pois, desde que me conheço como gente, leio esse tipo de publicação, de Maurício de Souza a Moebius, passando por quadrinhos de super-heróis: leio tudo o que está ao meu alcance. Acredito que é por isso que, em meus filmes, procuro sempre usar o enquadramento como um dos artifícios principais para contar a história. No mais, procuro ser um observador do cotidiano prestando atenção nos mínimos detalhes do dia-a-dia, pois nunca se sabe quando algo servirá de inspiração para uma boa história.

M.M.: Se pudesse escolher qualquer ator para dirigir, de qualquer época e país, quem você escolheria? Por quê?

J.C.: Jack Nicholson. Acho ele um dos atores mais geniais e versáteis que já vi em filmes.

M.M.: E se pudesse trabalhar ao lado de qualquer diretor, de qualquer época e país, qual seria ele? Por quê?

J.C.: Alfred Hitchcock. Ninguém foi tão excelente quanto ele na arte de contar boas histórias.

M.M.: Seus filmes são de baixíssimo orçamento, e essa característica costuma ser um dos temas principais nas entrevistas de que você participa. Normalmente, as pessoas perguntam como é trabalhar com tão pouco dinheiro, quais são as dificuldades, onde você encontra apoio e coisas do tipo. Acho isso bem interessante, mas não vou fazer essas perguntas novamente porque, sendo um escritor brasileiro e um curioso no mundo do cinema, eu sei o que é trabalhar sem dinheiro (risos). Além disso, admiro o fato de você sempre falar da falta de recursos com um quê de orgulho, e não como forma de justificar eventuais problemas ou de fazer com que as pessoas olhem para seus filmes com “tolerância”, e isso é possível simplesmente porque você não precisa justificar nada nem da “tolerância” de ninguém, já que os filmes são bons por si só, independentemente de quanto custaram para ficar prontos. No entanto, um aspecto disso tudo me intriga: com limitações tão rígidas de orçamento, você não tem todos os equipamentos e materiais necessários para fazer tudo o que quer, mas, por outro lado, também não tem que dar satisfação para ninguém (como grandes estúdios, produtores e patrocinadores exigentes, por exemplo). Pensando nisso, qual é a extensão da sua liberdade criativa?

J.C.: Ótima pergunta! Acertou em cheio em dizer que não gosto de me vitimizar em relação ao fato de fazer filmes de baixo orçamento, pois acredito que é possível contar boas histórias independente de quanto você gasta. Tudo está mais relacionado à sua habilidade como diretor e de como resolve essa questão de forma criativa e estratégica. Se formos pensar, todos os filmes possuem suas dificuldades nesse quesito, mas em níveis diferentes. Mesmo um filme que tenha um orçamento alto, se não for o suficiente para que seja executado da forma como foi imaginado, as coisas não sairão como deveriam ser e isso pode prejudicar o resultado final. Pior ainda, o filme pode ter muito dinheiro, mas os profissionais envolvidos podem ter uma limitação criativa, o que com certeza é pior do que falta de dinheiro.

No meu caso, gosto de pensar que tenho liberdade total para fazer o que desejo em meus filmes. Isso se deve à forma como eu normalmente escrevo. Busco nas limitações orçamentárias um estímulo para a minha criatividade e, com o tempo, isso me ajudou a criar uma forma muito singular e simples de fazer cinema. Normalmente penso no que já tenho, contando com as locações, equipamentos e profissionais que topariam se envolver no projeto. Com essa base, faço a história. É claro que muitos vão pensar que isso já denota uma falta de liberdade, pois, se tivesse mais dinheiro, poderia, digamos, criar uma nave espacial em tamanho real para fazer um filme. Existem formas e formas de se realizar uma cena. A magia da coisa é saber que a câmera enquadra o que você quer, e muitas vezes filmar em um fundo infinito escuro pode ser mais interessante para se representar uma viagem espacial do que em uma nave cheia de apetrechos datados. Vai depender do que você quer dizer e mostrar em seu filme. Essa é a viagem de ser diretor de cinema.
Parte da equipe de diretores de As Fábulas Negras
M.M.: Como você acha que lidaria se fosse fazer um filme com um orçamento bem generoso? Você acha que teria dificuldades?

J.C.: Não há diferença entre fazer um filme com muito dinheiro ou de baixo-orçamento. Tudo vai depender de como você aproveita esses recursos que estão ao seu dispor para contar a sua história. Falando de forma sincera, pela minha experiência fazendo filmes, não só no cinema, mas na publicidade, já me sinto preparado para realizar qualquer trabalho nesse sentido. O desafio agora é outro: é encontrar boas ideias e histórias que sejam relevantes de alguma forma.

M.M.: Percebo que você viaja muito para promover seus filmes e está sempre atrás de concursos e festivais de cinema para exibir seus curtas-metragens. Confesso que, sozinho, tenho muita dificuldade para divulgar meus trabalhos e encontrar espaços adequados para eles em um mercado tão apertado e manipulado quanto o mercado literário brasileiro (muito similar ao cinematográfico, em que obras estrangeiras ganham praticamente 99% da atenção de crítica e público). Então, a próxima pergunta que vou fazer é muito importante para mim: como você tem fôlego para encontrar, se inscrever e participar de tantos festivais? Você tem uma equipe que o ajuda ou você descobre e desbrava sozinho todas essas oportunidades?

J.C.: Essa é uma pergunta que muita gente me faz, e, na verdade, não há muito segredo, e sim muito trabalho.

Existem milhares de festivais pelo mundo e, por isso, é necessário fazer uma peneira de para onde você pretende mandar seu filme, trabalhando constantemente nesse intuito. Não ache que vai fazer um filme e automaticamente irão lhe chamar para exibir. É necessário se inscrever nos festivais e mostras e se acostumar a receber muitas negativas. Isso envolve muito esforço, mas, geralmente, quando se trabalha bastante e se tem um bom material nas mãos, consegue-se um bom resultado.

M.M.: Seus filmes já foram exibidos no exterior, em festivais internacionais, o que me deixa muito feliz. Como seus curtas vêm sendo recebidos fora do país?

J.C.: Tem sido ótimo. Desde o filme GATO (2009), a recepção de meus filmes no exterior tem sido bem interessante. Foi o primeiro filme que mandei para festivais fora do país e, além de ganhar o prêmio de melhor curta latino-americano no Montevideo Fantastico no Uruguai (2010), participou de festivais como Macabro no México (2010), HorrorQuest (2012) e Berkshire Short Film Fest (2013), ambos nos Estados Unidos. Conversando com pessoas que foram aos eventos e com os organizadores, tive uma resposta muito positiva de meu trabalho e comecei a investir em mandar os filmes para festivais de fora do Brasil.

O curta ESTRANHA (2011), por exemplo, foi exibido no Zinema Zombie Fest, na Colômbia, no Montevide Fantastico, no Uruguai, no Santiago Rojo Sangre, no Chile, no Puerto Rico Horror Film Festm, nos Estados Unidos, no Aurora, Mórbido e PostMortem, no México e no Noche de Cortos de Cine Chivos Y Fotografia, na Costa Rica.

Mas o maior resultado que alcançamos em festivais foi com o filme ENCOSTO (2013), que foi selecionado em mais de 70 festivais, exibido em 20 países. Recebi diversos relatos de pessoas de outros países que assistiram ao filme e gostaram, muitos deles dizendo que o filme era assustador, além de releases e críticas muito boas. O interessante é que ENCOSTO trata de um tema bem brasileiro, que são os rituais de magia negra. Isso prova que qualquer tema pode ser explorado de forma universal, tudo vai depender de como você conta essa história.
Cena do filme ENCOSTO
Com JUDAS (2015) também tem sido bem interessante. O filme ganhou um prêmio na categoria Melhor Filme Estrangeiro no HorrorQuest, em Atlanta, nos Estados Unidos. JUDAS também recebeu prêmios no Brasil, como o de Melhor Curta-Metragem no Mondo Estronho, em Curitiba, Menção Honrosa no Guará Cine Vídeo, no Espírito Santo, e Melhor Edição no Festicini - Festival Internacional de Cinema Independente, em Sumaré-SP). Também foi selecionado em 46 festivais e mostras, sendo 36 no Brasil, em festivais importantes como Curta Cinema, Cine Op, Mostra do Filme Livre, Fantaspoa, entre outros, e 15 no exterior, em festivais como Calgary Horror Con, no Canadá, Courts Devant, na França, Fantafestival, na Itália, Montevideo Fantástico, no Uruguai, Post Mortem, no México, Suspiria Fest, na Espanha, WorcesterShire, na Inglaterra, entre outros.

Lá fora a repercussão tem sido incrível. Recebi mensagens de várias pessoas dizendo que gostaram do filme e que acharam a ideia muito original. Saíram até algumas críticas muito interessantes ressaltando também essas peculiaridades do filme.

Acho que agora é trabalhar ainda mais nesse circuito de festivais e ver o resultado que o filme vai alcançar. De qualquer forma, ele já vem percorrendo um excelente percurso tanto fora como dentro do país.

M.M.: Você já trabalhou com outros cineastas pelos quais tenho grande admiração, como, por exemplo, Rodrigo Aragão e José Mojica Marins (infelizmente, ainda não vi nenhum filme do Petter Baiestorf). Como é a sua relação com essas pessoas?

J.C.: Conheci o Rodrigo em São Paulo, em 2007, no Cinefantasy, festival de cinema fantástico que acontecia na cidade, na época. Naquela ocasião, trocamos apenas algumas palavras no bar. Por coincidência, no ano seguinte, o primeiro filme dele, Mangue Negro, passou por um processo de finalização na produtora em que eu trabalhava, de modo que sentamos juntos para assistir ao resultado e apontar alterações que ele desejava para a entrega final.

No ano seguinte, participei de uma de suas oficinas de efeitos e ele e a Mayra (esposa e produtora de seus filmes) disseram que tinham visto meu filme O assassinato da Mulher Mental em um festival no Espírito Santo e que se divertiram muito. A partir daí, nos tornamos amigos!

Em 2009, fomos a Guarapari a convite do Rodrigo para o festival “Cine Terror na Praia”, que fez uma retrospectiva de meus filmes até então. Nesse evento, em uma conversa informal, o Rodrigo me disse que tinha gostado de minha atuação em GATO (2009) e me chamou para um papel para seu próximo longa, o qual aceitei logo de cara, é claro. Só não sabia que era o papel de um dos protagonistas de A noite do Chupacabras. Desde então essa parceria tem dado muito certo. Já fizemos 3 longa-metragens juntos, o que é sempre um prazer, pois admiro muito o trabalho dele.

Sempre fui admirador do trabalho do Mojica, mas só o conheci pessoalmente um pouco antes de filmarmos seu episódio O SACI para a antologia As Fábulas Negras (nesse filme fui assistente de direção). O que posso dizer é que o José Mojica Marins é um gênio, um ícone do cinema mundial e o maior representante do cinema de horror no Brasil. Só de estar perto dele você já aprende muito. Ele trabalha como um maestro na direção e seu conhecimento é algo impressionante. Foi como ver o próprio cinema em ação. Durante o filme, foi muito interessante conhecê-lo mais de perto. Ele é uma pessoa extremamente bem humorada, gentil, humilde e divertida. Foi um aprendizado que levarei para toda a vida.
Joel Caetano ao lado de José Mojica Marins durante as filmagens de As Fábulas Negras
Eu já conhecia também os filmes do Petter, pois em uma certa ocasião trocamos DVDs de nossos curtas pelo correio. Ele é uma lenda do cinema independente e tem uma obra muito extensa que vale a pena conhecer (já avisando que não é para quem tem estômago fraco, rs).

Pessoalmente nos conhecemos nas filmagens de A noite do Chupacabras (2011), e, apesar do antagonismo de nossos personagens, ele foi um grande parceiro nesse trabalho. Apesar de amarmos o processo, A noite do Chupacabras foi um filme difícil de se realizar fisicamente, pois envolvia muita ação no meio da mata escura, lutas no rio gelado e muito sangue falso no corpo o tempo todo. Para enfrentar todas essas loucuras passávamos o tempo todo falando besteiras e rindo, principalmente quando percebíamos que alguém da equipe estava começando a perder energia. Sendo assim, acabamos mantendo um ótimo relacionamento de amizade e, quando nos encontramos em festivais ou eventos, rola sempre um ótimo papo.

M.M.: Em “As Fábulas Negras” há muita comédia misturada ao terror, mas uma comédia proposital e eficiente que dá uma alma toda especial às histórias. Ao longo de grande parte da projeção, percebi que muitas pessoas riam como crianças, mas as risadas cessaram quase por completo no episódio “A Loira do Banheiro”, que você dirigiu, e todo mundo ficou tenso em suas poltronas. Os poucos risos que sobraram foram risos de angústia, meio forçados para espantar o medo. Gostei muito disso e constatei que as pessoas adoraram o seu episódio assustador. “A Loira do Banheiro” deu uma faceta nova para o filme – um ar mais sério, por assim dizer –, deixando-o bastante equilibrado e não cansando o espectador com o mesmo ritmo de sempre, impedindo a repetição. Isso foi intencional? Conte-nos mais sobre a produção de “As Fábulas Negras”.

J.C.: Quando tive o prazer de ser convidado para este projeto, logo de cara me foi oferecido a lenda da loira do banheiro.

A intenção do projeto, além de explorar essas lendas e personagens folclóricos, era aproveitar as características narrativas e regionais de cada diretor. No meu caso, como sou um cara da cidade e acostumado a trabalhar com histórias mais densas, A Loira do Banheiro veio bem a calhar.

Como era um filme de fantasma, na minha concepção não faria sentido ter muito humor, por isso decidi evitar ou usar os alívios cômicos de forma mais sutil. A minha intenção com o filme foi trazer uma atmosfera de cinema de terror clássico de fantasmas, usando referências claras do cinema de horror japonês misturadas com elementos que adoro, como os filmes de terror italianos e filmes de prisão feminina, além, é claro, de um bom suspense.

Tenho muito orgulho do resultado final. Assisti a inúmeras sessões com o público e a resposta é sempre muito divertida. Adoro quando vejo as pessoas pulando da cadeira durante as sessões. Isso quer dizer que consegui atingir meu objetivo.

M.M.: Cada episódio em “As Fábulas Negras” se destaca por uma característica própria. A do seu é, inegavelmente, o clima assustador e pesado que toma conta da história do começo ao fim, com muita influência do terror oriental, das obras-primas do Dario Argento e – corrija-me se eu estiver enganado – dos terrores adolescentes dos anos 80 e 90 (percebi um pouco do espírito de “A Noite dos Demônios” em “A Loira do Banheiro”, e isso foi legal demais). Apesar das peculiaridades de cada episódio, todos parecem se integrar muito bem entre si, como se tivessem um espírito em comum, fazendo o filme fluir naturalmente, sem se tornar cansativo (o que sempre é um desafio em filmes de episódios, como é o caso de “Na Solidão da Noite” e “Creepshow”, para citar alguns). Isso me fez pensar: até que ponto você se identifica com os outros diretores e em que ponto você percebe que se distingue deles?

J.C.: Acertou nas influências perfeitamente. Você é um ótimo observador.

Bom, em relação aos outros diretores, temos em comum, além de todas as influências cinematográficas, o fato de trabalharmos bem com o cinema de baixo-orçamento. Esse foi um fator preponderante para a escolha dos cineastas: conseguir realizar bons trabalhos com o mínimo possível de recursos. Essa característica em comum deu ao filme um aspecto de algo muito maior do que ele poderia ter sido, se formos levar em consideração o que foi gasto para produzi-lo.

Quanto às diferenças, é difícil dizer, nunca pensei muito sobre isso . Apesar de todos seguirem praticamente a mesma escola, cada um teve as suas experiências, influências e um olhar muito peculiar sobre todas as coisas. Isso, na verdade, é o que nos molda como pessoas e, consequentemente, como artistas. Tenho dificuldade de apontar essas diferenças, mas são muitas e isso é o que acho maravilhoso nesse filme: a forma de contar histórias de cada um, dentro de uma proposta que, a meu ver, ficou muito bem integrada apesar dessa pluralidade.

M.M.: Os filmes de que você participa são sempre cheios de sangue falso, tripas e improvisos. Qual foi a situação mais bizarra que você já vivenciou num set de filmagens?

J.C.: Foi em A noite do Chupacabras, quando usaram uma cobra de verdade de mais de 1 metro para contracenar comigo em uma cena em que eu estava amarrado em uma árvore. A cena ficou ótima, pois eu estava sentido medo de verdade (risos).
Cena brutal de A Noite do Chupacabras
M.M.: Stephen King disse que “a ficção é a verdade dentro da mentira”. Acredito profundamente que a ficção, em qualquer meio artístico no qual esteja inserida, é um dos principais fatores para a evolução de uma sociedade, pois ela nos faz entender aquilo que nossa razão ainda não foi capaz de alcançar. Em outras palavras, a ficção é o modo de dizer ao coração aquilo que dificilmente o cérebro compreenderia. A meu ver, a ficção previne e alerta: ela é como uma mesa de laboratório para a vida e para os sentimentos humanos, fazendo com que não precisemos experimentar todos os tipos de situações para saber quais serão seus resultados (como matar alguém e sofrer com as angústias da culpa depois, para ficar com o exemplo mais simples do clássico Crime e Castigo). A ficção, em última análise, é o que nos confere empatia e sensibilidade para com os nossos semelhantes.

Em seu mais recente curta-metragem, o excelente “Judas”, você criou um alerta muito forte sobre a banalização da violência e sobre as complexidades da relação entre pai e filho, o que me agradou muito. No entanto, como sempre costuma acontecer, sinto que muita gente saiu da sala de cinema vendo não mais do que um simples show de horrores, não sendo afetada pela mensagem anti-violência que existe nas “entrelinhas”dessa sua fábula sangrenta. Há pessoas que parecem só entender as mensagens quando elas vêm explicadinhas em uma apostila ou em uma cartilha, de preferência desenhadas. Sobre isso, tenho algumas perguntas: eu estou certo na análise que fiz do filme? O que você pensa da violência no mundo real? Você acha que a violência na ficção é importante para diminuir a violência no mundo real? Você espera que seus filmes tenham um impacto benéfico na vida das pessoas, para que elas repensem seus comportamentos e mentalidades?

J.C.: Novamente a sua análise está correta.

Acho que com um filme de terror podemos tratar de forma indireta temas muito mais profundos, sem perder o caráter de entretenimento. Esse é um equilíbrio complicado, pois normalmente filmes que retratam certas realidades, como é o caso de JUDAS, são dramas literais que se assemelham demais com a vida real e que, convenhamos, são difíceis de comover grande parte do público já calejado com o sangue dos noticiários televisivos. Essa empatia por meio do lúdico é uma ferramenta muito eficiente para expor certos assuntos sem forçar demais o espectador a uma ideologia pré- estabelecida. O ideal é fazer as pessoas refletirem, e, nesse sentido, acredito que a violência na ficção pode ser muito benéfica.

M.M.: Muito obrigado novamente pelo tempo e pela paciência em responder todas essas perguntas de um simples escritor curioso. Espero que você tenha muito sucesso em sua carreira no cinema, cada vez com obras mais maravilhosas (e digo isso como espectador, não como entrevistador).

J.C.: Muito obrigado novamente pelo espaço, e quero lhe dar os parabéns pelas excelentes perguntas e pelo seu trabalho como escritor! Um abraço a todos.
***
Assista aqui ao curta-metragem ENCOSTO!


Para os interessados em conhecer mais do cinema de terror nacional, sugiro as seguintes páginas (links em vermelho):

Site da RZP Filmes;
Site da Horror Store;
Facebook do Joel Caetano;
Facebook do Rodrigo Aragão (converse com ele para adquirir um dvd original de As Fábulas Negras!).

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